As 10 mentiras mais contadas sobre os indígenas
HISTORIA
As 10 mentiras mais
contadas sobre os indígenas
02 de dezembro de 2014
As
afirmações listadas abaixo foram extraídas da vida real. Algumas nas ruas do
interior do Brasil, outras nas cidades grandes, outras em discursos de
políticos. Percepções diversas, vindas de pessoas com histórias diferentes, mas
com um direcionamento em comum: a disseminação do discurso anti-indígena com
argumentos falsos.
Por
Lilian Brandt* / AXA
1) Quase não existe mais
índio, daqui alguns anos não existirá mais nenhum
2) Os índios estão perdendo sua cultura
3) Estão inventando índios, agora todo mundo pode ser índio
4) O Brasil é um país miscigenado, aqui não tem racismo
5) Os índios têm muitos privilégios
6) Os índios são tutelados, por isso índio não vai preso e não pode comprar bebida alcoólica
7) Tem muita terra para pouco índio
8) Os índios são preguiçosos e não gostam de trabalhar
9) Nossa sociedade é mais avançada, não temos nada para aprender com os índios
10) Os índios atrasam o desenvolvimento do País
2) Os índios estão perdendo sua cultura
3) Estão inventando índios, agora todo mundo pode ser índio
4) O Brasil é um país miscigenado, aqui não tem racismo
5) Os índios têm muitos privilégios
6) Os índios são tutelados, por isso índio não vai preso e não pode comprar bebida alcoólica
7) Tem muita terra para pouco índio
8) Os índios são preguiçosos e não gostam de trabalhar
9) Nossa sociedade é mais avançada, não temos nada para aprender com os índios
10) Os índios atrasam o desenvolvimento do País
Se as pessoas não sabem muito sobre os indígenas na
atualidade, sabem menos ainda sobre o passado destes povos. Mesmo os
pesquisadores não encontram um consenso, e os números variam muito conforme os
critérios utilizados.
A antropóloga e demógrafa Marta Maria Azevedo
estima que, na época da chegada dos europeus, a população indígena no Brasil
era de 3 milhões de pessoas. Eram mais de 1.000 povos diferentes, que durante
séculos foram exterminados pelos conquistadores, seja por suas armas de fogo,
seja pelas doenças que eles trouxeram. De acordo com antropóloga, em 1957 havia
no Brasil apenas 70 mil indígenas. O crescimento desta população é observado
somente a partir da década de 1980.
Em 1991, quando o IBGE passou a coletar dados sobre
a população indígena brasileira, eles somavam 294 mil pessoas. Em 2000, o Censo
revelou um crescimento da população indígena muito acima da expectativa,
passando para 734 mil pessoas. Em 2010, a população indígena continuou
crescendo, e o Censo mostrou que mais de 817 mil brasileiros se autodeclararam
indígenas, representando 0,47% da população brasileira. Eles estão distribuídos
em 305 etnias e falam 274 línguas.
Esse aumento populacional jamais seria possível se
fossem considerados apenas fatores demográficos, como a natalidade e a
mortalidade. Esses dados revelam o crescimento do número de pessoas que
passaram a se reconhecer como indígenas e o “ressurgimento” de grupos
indígenas. Isto se dá porque, antes, ser índio no Brasil significava ser
atrasado, inferior, escravizado, catequizado, ser alvo de discriminação, de
chacinas e até mesmo não ser considerado humano. Diversos povos foram obrigados
a abrir mão de suas línguas e de sua cultura. Agora os povos indígenas voltam a
afirmar sua identidade, talvez porque as circunstâncias estejam mais amigáveis.
Ou talvez porque este grito não suporte mais ser calado.
Tratá-los simplesmente como “índios” esconde a
imensa diversidade cultural e circunstâncias de vida tão distintas. Mas algo
muito mais forte que as diferenças étnicas propicia a união destes povos: o
fato de se sentirem diferentes de nós.
Temos no Brasil todos os tipos de extremos: índios
que possuem seu território assegurado e índios que morrem lutando por seu
território; índios brancos e índios negros; índios cristãos e índios pajés;
índios isolados e índios urbanos.
Os povos indígenas isolados são aqueles que não
estabeleceram contato permanente com a população nacional e com o Estado. As
informações sobre eles são transmitidas por outros índios, por moradores da
região e por pesquisadores. A Funai (Fundação Nacional do Índio) tem cerca de
107 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal, dos
quais 26 já foram confirmados e estão sendo monitorados, seja por imagens de
satélite, sobrevoos ou expedições na região. Não se sabe, no entanto, a quantidade
destes povos e indivíduos que vivem voluntariamente isolados.
Muitos já tiveram alguma experiência de contato não
amistosa com garimpeiros, madeireiros, grileiros e traficantes próximos à
fronteira. Também é provável que tenham tido ou mantenham contato com
populações ribeirinhas, seringueiros e, principalmente, com algum outro povo
indígena.
Os resultados do contato conosco são trágicos, a
começar pelas doenças que transmitimos, para as quais eles não têm imunidade:
sarampo, rubéola, caxumba, difteria, tétano, hepatite, gripe e outras.
Conhecendo esta realidade, estes povos que vivem em situação de isolamento
escolheram fugir. Isso não significa, no entanto, que eles não tenham notícias
de nossa sociedade. Eles observam rastros, utilizam ferramentas e se relacionam
com outros indígenas que contam as novidades do mundo do branco.
Em outros tempos, como muitos devem se lembrar, o
órgão governamental indigenista, na época chamado SPI (Serviço de Proteção aos
Índios), deixava presentes como espelhos, panelas e ferramentas para atrair os
indígenas. Hoje a Funai busca garantir que eles tenham seu território
assegurado para transitarem livremente. Mas as ameaças são muitas e cada vez
mais seus territórios são menores.
Os indígenas que vivem em áreas urbanas somam 324
mil, ou seja, 36% do total da população indígena, um número que vem crescendo
ano após ano (IBGE, 2010). Há dois motivos recorrentes para que esses índios
vivam em áreas urbanas. Um deles é a migração dos territórios tradicionais em
busca de melhores condições de vida na cidade. O outro é que os limites das
cidades cada vez mais alcançam as fronteiras de seus territórios.
As pessoas continuam acreditando que a população
indígena está sendo reduzida, mesmo que os números digam o contrário e que eles
estejam mais presentes nos centros urbanos. A desinformação tem uma
consequência: fingimos que os índios estão deixando de existir e gradualmente
não pensamos mais na situação deles. Assim fica mais fácil justificar nenhum
respeito a seus direitos e à sua própria vida.
Esta afirmação resume uma série de outras ideias
muito difundidas: “índio que usa celular não é mais índio”, e suas variáveis
televisão, computador, calça jeans, tênis, rede de pesca, barco a motor,
caminhonete, trator e etc.
De modo geral, cultura é o conjunto de
manifestações que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a língua, a moral,
os costumes, os comportamentos e todos os hábitos e aptidões adquiridos por
pessoas que fazem parte de uma sociedade específica.
Sendo composta por diversos elementos, a cultura
está em constante transformação, se inter-relacionando de diferentes formas com
o ambiente, as circunstâncias, outras culturas e consigo mesma. Logo, a cultura
não é algo que se perde, é algo que se transforma constantemente.
É certo, no entanto, que não temos uma relação de
troca cultural justa com os indígenas. Nossa sociedade se caracteriza por
termos uma cultura dominadora e impositiva. O impacto do nosso modo de vida
reflete diretamente na vida dos indígenas, de forma que hoje já não há a mesma
fartura e biodiversidade que se tinha em 1500. O rio está contaminado por
agrotóxicos, a floresta foi derrubada e a quantidade de peixe e de caça foi
drasticamente reduzida.
Neste sentido, a incorporação de elementos de outra
cultura é também uma estratégia de resistência. O uso de equipamentos de pesca
dos “brancos”, por exemplo, pode ser um modo de resistência cultural, num
entendimento de que pescar é mais importante para a identidade indígena do que
se manter preso a técnicas tradicionais e não chegar com o peixe em casa.
Uma das maneiras de se fortalecer a tradição é
inovar a partir de uma forte referência tradicional. Um grupo de jovens Guarani
Kaiowá nos dá um bom exemplo de resistência cultural. O grupo de rap Brô MC’s é
formado por duas duplas de irmãos, e daí o nome “brô”, do inglês “brother”.
Suas rimas misturam português e guarani e denunciam o desmatamento ilegal, o
esquecimento e a perseguição que seu povo sofre por pressão do agronegócio.
Outras vezes, objetos não-indígenas podem ser
inseridos na cultura indígena com um significado e uso completamente diferentes
do nosso, como garrafas plásticas cuidadosamente cortadas e limadas para
fazerem colares, à semelhança do que fazem há centenas de anos com as lascas de
caramujos. E outras vezes, por fim, eles podem incorporar determinado elemento
de outra cultura e nem por isso serem “menos índios”, assim como comer sushi
não nos torna japoneses, tomar chimarrão não nos torna gaúchos e tomar banhos
diários não nos torna índios.
Nos assusta a velocidade com que alguns indígenas
incorporam elementos da nossa cultura no seu modo de vida. Mas sabemos que as
trocas entre povos sempre existiram. Se nos chama a atenção ver um indígena ao
celular, é porque não sabemos que o adorno que ele utiliza em rituais de sua
tradição há séculos podem ter sido confeccionados por um outro povo e
utilizados como moeda de troca. E por que não?
Com que velocidade os Karajá incorporaram elementos
da cultura Tapirapé, e vice-versa? Com que velocidade os brasileiros incorporam
elementos da cultura norte-americana? Não existe meios de medir precisamente as
causas e os efeitos destas trocas culturais.
Nossa sociedade não aceita que este sujeito tão
diferente de nós possa utilizar as mesmas tecnologias e bens de consumo que
utilizamos. Assim, ao mesmo tempo que vemos os indígenas como inferiores por
não terem desenvolvido as tecnologias que nos saltam aos olhos, não aceitamos
que ele desfrute das facilidades da vida contemporânea. Como se tudo o que
temos hoje fosse resultado apenas do trabalho de homens brancos e para usufruto
exclusivo de homens brancos. Como se o progresso tecnológico e econômico não
tivesse sido impulsionado também pela tomada de territórios e riquezas que
pertenciam a esses índios.
Mas para que índio quer tecnologia? Tenho visto
indígenas vendendo artesanatos através do Facebook, trocando e-mails com lojas
que revendem suas produções, promovendo abaixo-assinados para terem seus
direitos respeitados, se comunicando com parentes que ficaram na aldeia
enquanto ele saiu para estudar na cidade e namorando, como a gente.
Txiarawa
Karajá fotografa os espíritos de Aruanã. Aldeia Santa Isabel do Morro, TI
Parque do Araguaia, TO. Imagem de Lilian Brandt.
O uso da fotografia e, especialmente, a produção de
vídeos, tem se destacado entre os povos indígenas com a função de registrar a
realidade, de encenar mitos e histórias, de criar estórias e de mostrar para
outros povos (indígenas ou não) um pouco de sua cultura. As produções
audiovisuais também têm sido usadas como uma ferramenta de denúncia ao ataque
de seus direitos.
Outro equipamento que tem sido bastante útil é o
GPS, que pode ser uma ferramenta de vigilância e atuação conjunta com os órgãos
responsáveis pelo combate do garimpo, de madeireiras e de outras atividades
ilícitas.
Se a pessoa se reconhece como indígena e se
identifica com um grupo de pessoas que também se reconhecem como indígenas e a
consideram indígena, então ela é. Não existe nenhum reconhecimento da Funai,
nenhum julgamento de um não-indígena e nenhum critério imposto por nossa
sociedade que possa ser maior do que o seu sentimento e o sentimento da
coletividade a qual ela pertença.
Ela pode se considerar indígena por uma questão
genética e/ou cultural, mas não cabe a nós e nem ao governo atribuir identidade
a outra pessoa. A autodeclaração é defendida também pela Convenção nº 169 sobre
Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
ratificada pelo Brasil em 2000.
Por isso, não tem fundamento a ideia de que “sendo
assim, todos os brasileiros seriam indígenas, já que correm em nossas veias
sangue indígena, daquela bisavó que foi pega no laço”. Este discurso não viria
de um indígena. Se o cidadão diz isso querendo reduzir o direito de ser índio
na atualidade, é evidente que está se identificando muito mais com o bisavô
estuprador do que com a bisavó violentada.
Repare que a televisão, por exemplo, se esforça em
caricaturar os indígenas. Quando a TV mostra aquele “indiozão” bonito da
Amazônia, forte, guerreiro, caçador, todo enfeitado de penas e muito bem
pintado, o povo acha bonito de ver e até acha que não existe mesmo racismo
contra indígena. Mas quando a TV diz que aquele é um índio, discretamente nega
outras possibilidades de índios.
Nega que existam índios sem penas e sem pinturas,
com jeans e celular. Nega aqueles que não têm mais arara em seu território e
por isso não usam cocar. Nega aqueles que têm cabelo crespo porque os negros
escravizados fugiram para sua aldeia e foram bem recebidos como parceiros de
resistência. Nega aqueles que vivem nas cidades porque seus territórios foram
invadidos, aqueles que vão para Brasília protestar, etc.
Os índios são como são. Se nossa sociedade tem
dúvida se um indivíduo é índio, esta dúvida não encontra recíproca por parte
dele. Quem é índio sabe que é, porque tem a vivência do seu povo e sente na
pele o racismo.
Nossa sociedade acredita que existe uma escala de
quem é mais ou menos índio: “vive em maloca? Tem cabelo liso? Sabe pescar? Usa
celular? É rico?”. Mas não é assim que funciona, não existe uma tabelinha para
a gente definir quem é e quem não é, quem é mais e quem é menos. Essa crença
evidencia o desejo oculto de querer que tenham menos índios, pois alguns já
estão “aculturados” e “integrados”.
A Convenção nº 169 da OIT garante a autodeterminação
dos povos e o direito de que cada população indígena ou tribal possa escolher
seus próprios caminhos para o futuro. Esse princípio consta ainda na Declaração
das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas.
O entendimento de que os indígenas seriam
assimilados até deixarem de existir já foi superado na legislação, mas ainda
precisa ser superado na sociedade.
Racismo, assim como machismo, é algo sutil. Às
vezes ele aparece escancarado, quando um sujeito chama um negro de “macaco”,
quando uma mulher é estuprada, quando se constata um salário menor para
mulheres e negros do que para homens brancos para fazerem exatamente o mesmo
trabalho. Esse racismo escancarado é muitas vezes (mas nem sempre) condenado
pela sociedade.
Mas nem tudo é preto no branco, racismo ou
não-racismo. Há infinitas combinações de cores, há infinitas formas de
demonstrar e de esconder o racismo e ainda assim julgar-se superior.
A diferença não está só na cor da pele, no tipo de
cabelo e na classe social. Além de tudo isso, a diferença é cultural e muitas
vezes até linguística. Os indígenas são, provavelmente, os brasileiros mais
ímpares e diferentes que compartilham o mesmo território que nós.
O racismo pode aparecer em momentos leves, entre
amigos. As pessoas naturalizaram de uma tal forma o racismo contra indígenas,
que não percebem que jamais poderiam usar aquelas mesmas palavras para se
referir a qualquer outro grupo de pessoas. Nossa sociedade tem sido muito
conivente com o racismo contra indígenas, a despeito do que diz nossa
legislação.
Conforme a Constituição Federal e a Lei nº
7.716/89, serão punidos os crimes de discriminação ou preconceito contra raça,
cor, etnia, religião ou procedência nacional, sendo o crime de racismo
inafiançável e imprescritível. No entanto, diariamente os indígenas são
discriminados e são raros os casos de denúncia e condenação.
As redes sociais, por exemplo, estão repletas de
conteúdo racista. Em abril de 2014, a Justiça Federal condenou um jornalista
amapaense por cinco mensagens que utilizavam expressões de desprezo se
referindo aos índios Guarani Kaiowá. De acordo com a decisão, o jornalista
prestaria serviços comunitários na Casa de Apoio à Saúde Indígena do Amapá
(Casai) e pagaria seis salários mínimos ao Conselho de Caciques de Oiapoque e à
Associação dos Indígenas de Wajãpi. A proposta é que, prestando serviços
comunitários na Casai, o jornalista conviva com indígenas e, conhecendo a
realidade, passe a respeitá-los. Tomara que sim. (Saiba mais)
Na esfera política os discursos de ódio estão cada
vez mais escancarados. O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária,
Deputado Federal Luís Carlos Heinze (PP-RS), diversas vezes desqualificou
publicamente quilombolas, índios, gays e lésbicas (saiba
mais). As
urnas mostraram que a população o apoia: em 2014, Heinze foi reeleito pela 5ª
vez, como Deputado Federal do Rio Grande do Sul, sendo o deputado mais votado
do estado.
Os discursos racistas atingem diretamente os
indígenas. O relatório Conflitos no Campo Brasil 2013, da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), mostra que, das 1.266 ocorrências relacionadas ao conjunto dos
conflitos no campo no Brasil, 205 estão relacionadas a indígenas, totalizando
16%. A maior parte destes casos refere-se a conflitos por terra ou retomada de
territórios, somando 154 ocorrências.
Os povos indígenas são os mais afetados pela
violência no Brasil. Ainda segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil, em
2013, das 829 vítimas de assassinatos, ameaças de morte, intimidações,
tentativas de assassinato e outras, 238 eram indígenas. Das 34 mortes por
assassinato, 15 eram de indígenas. Eram também indígenas 10 das 15 vítimas de
tentativas de assassinato, e 33 das 241 pessoas ameaçadas de morte.
É triste constatar que as mortes de indígenas no
campo, as quais se caracterizam como um verdadeiro genocídio, encontram uma
referência no discurso de figuras públicas e lideranças políticas, quase sempre
motivadas por interesses econômicos.
O racismo (assim como o machismo) habita o
imaginário social, paira sobre a sociedade como um todo, e, consequentemente,
sobre cada indivíduo. Como toda ideia, ele é vivo, autônomo e se faz
transparecer em ações e ideologias.
Um dos modos que o racismo age é pela
generalização, quando se nota algo negativo de um indivíduo e se transfere essa
questão ofensiva para o povo todo. Utilizando um exemplo bem comum em cidades
pequenas que convivem com indígenas, imagine que alguém veja na rua um homem
bêbado. Se o homem não é indígena, comenta-se “este homem está bêbado”, mas se
ele for indígena o comentário é “os índios estão sempre bêbados”.
A sociedade é racista, e mesmo que você não se
considere racista, às vezes ele pode escapar discretamente. Vigie seus atos,
pensamentos, sentimentos e se permita ver.
Se estivéssemos aqui falando de privilégios como
desfrutar de uma vida em meio à natureza, estaria tudo bem. Mas não,
infelizmente este discurso vem acompanhado da crença de que “índio recebe um
salário do governo a partir do momento que nasce”.
Pior do que ter tantas pessoas acreditando nisso, é
a surpresa que expressam quando descobrem que não. “Não? Mas então, do que
vivem?”. Parece impossível acreditar que trabalham e que batalham pelo seu
sustento. Ao contrário do que tantos brasileiros acreditam, não existe muita
vantagem em ser indígena hoje em dia. Existe sim, muita coragem.
Em relação à saúde, a diferença é que os indígenas
são atendidos pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), que é parte
do mesmo SUS que atende aos não-indígenas. Na teoria, essa distinção permite um
olhar diferenciado dos profissionais de saúde, considerando questões culturais
e atuando em consonância com as práticas de saúde tradicionais indígenas. Na prática,
como os nossos postos de saúde, alguns funcionam bem, outros não. Faltam
equipamentos, às vezes não têm remédios, faltam profissionais especializados,
etc. Falta percorrer um longo caminho.
Na área da educação por muitos anos os indígenas
estiveram expostos à imposição de nossos valores e negação de sua identidade e
cultura. Hoje o Ministério da Educação é responsável por desenvolver uma
educação diferenciada, intercultural e bilíngue, dando espaço aos processos de
aprendizagem e aos conhecimentos indígenas. Além disso, os indígenas podem
elaborar seus próprios currículos e rotinas escolares com gestão indígena. De
acordo com o Ministério da Educação, a maioria dos professores ainda são
não-indígenas, totalizando 7.968, enquanto professores indígenas somam 7.321.
Na prática, como no ensino público para não-indígenas, com exceção de alguns
casos de sucesso, faltam materiais didáticos específicos, alimentação (sendo
que poucas vezes esta é de fato diferenciada), infra-estrutura etc.
Quanto aos benefícios sociais, indígenas são
considerados pelo INSS “segurados especiais” para fins de acesso ao salário
maternidade, aposentadoria por idade, auxílio doença, auxílio acidente,
aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio reclusão.
Segurados especiais são os trabalhadores rurais que
produzem em regime de economia familiar, sem utilização de mão de obra
assalariada. Além dos indígenas, são considerados segurados especiais os
agricultores, os seringueiros e os pescadores artesanais. Os indígenas precisam
comprovar que sua subsistência advém do extrativismo, do plantio ou de outra
atividade vinculada à terra e aos recursos naturais. Ou seja, os indígenas
acessam estes benefícios não por serem indígenas, mas sim por viverem de
atividades rurais, pois se forem assalariados, deixam de ser segurados
especiais.
E, por fim, os indígenas possuem o direito de
usufruir de seu território. As Terras Indígenas não
são dos indígenas, são propriedade da União, terras
públicas que pertencem a toda a nação brasileira, cedidas aos índios em regime
de posse permanente e usufruto exclusivo. Ou seja, eles não têm a propriedade
das terras: ganham o direito de nelas residir e fazer uso das riquezas do solo
e das águas para a atual e as futuras gerações viverem.
Mentira nº 6: Os índios são tutelados,
por isso índio não vai preso e não pode comprar bebida alcoólica
Xavante,
TI Marãiwatsédé. Imagem de Lilian Brandt.
Essa história é antiga e tem um fundo de verdade.
Desde o período colonial até o século passado, o Estado sempre considerou que
os indígenas deveriam ser integrados, ou seja, deveriam negar suas identidades
em nome de sua inserção à nação brasileira.
Esta concepção foi perpetuada por séculos e virou
“tutela” no Código Civil de 1916 (artigo 6º), que enquadrou os índios na
categoria de relativamente incapazes, condição semelhante à dos órfãos menores
de idade no século XIX.
O Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73) endossou o
regime de tutela, depois de separar categorias de índios em “isolados”, em
“vias de integração” e “integrados”, estabelecendo que o regime tutelar se
aplicaria aos índios ainda não integrados.
O Estado tutor é aquele que decide pelos índios e,
sob pretexto de cuidar deles, os mantém sob controle. Em nome desta “tutela”, o
Estado brasileiro promoveu um verdadeiro genocídio. A Comissão Nacional da
Verdade, que investiga crimes cometidos pelo governo ou agentes da ditadura
militar, estima que somente a construção de estradas na Amazônia, no governo do
general Médici (1969-1973), matou em torno de 8 mil índios (saiba
mais).
Na região do Araguaia, o povo Xavante de
Marãiwatsédé entregou um relatório de 71 páginas à Comissão Nacional da
Verdade. Entre os crimes, estão a invasão do território com a condescendência
de autoridades, empresários e poderes locais e nacionais (saiba
mais).
A legislação só tomou um rumo diferente em 1988,
com a atual Constituição Federal Brasileira. Nossa Constituição reconheceu e
introduziu os direitos permanentes dos índios, abandonando a ideia de que eles
seriam assimilados à nossa sociedade e endossando a ideia de que os índios são
sujeitos presentes e capazes de permanecer no futuro. Ela reconheceu ainda o
direito dos indígenas às suas terras e à cidadania plena. Esse avanço na legislação
indigenista foi uma conquista do movimento indígena.
O Novo Código Civil Brasileiro (2002), em seu Art.
4º, diz que “a capacidade dos índios será regulada por legislação especial”.
Como essa tal lei não existe, alguns podem acreditar que se trata do antigo
Estatuto do Índio, e daí se cai em contradição, já que o referido Estatuto
trata o índio como semi-incapaz.
O Estatuto do Índio e suas ideias retrógradas nunca
foram oficialmente revogados, mas muitos especialistas acreditam que a
Constituição Brasileira, como nossa lei máxima, por si só já o revoga em
relação à tutela. Porém, muitos juristas, legisladores e a população brasileira
ainda remetem ao Estatuto do Índio para embasar decisões e discursos,
valendo-se da contradição das leis e provocando insegurança jurídica para os
povos indígenas.
Por isso, no entendimento da Funai e de diversos
especialistas, indígenas são tão cidadãos quanto nós, e podem sim comprar
bebidas alcoólicas fora das Terras Indígenas. Aliás, o comerciante que não
vendesse estaria cometendo um crime ao discriminar o indígena, além de uma
prática abusiva prevista no inciso IX do art. 39 do Código de Defesa do
Consumidor.
Algumas instâncias governamentais encontram amparo
legal no Estatuto do Índio para proibir a venda de bebidas alcoólicas para
indígenas. O Artigo 58 desse Estatuto estabelece que constitui crime
“propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas
alcoólicas, nos grupos tribais ou entre índios não integrados”.
Em relação à criminalização, o Estatuto do Índio
diz que a pena deve ser atenuada, e “se possível, em regime especial de
semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos
índios mais próximos da habitação do condenado” (Art. 56).
A tutela em nada tem a ver com a não-responsabilização
do indivíduo por um crime que praticou. Tem a ver com um julgamento
diferenciado caso a questão se relacione à sua prática cultural e à necessidade
de um intérprete em seu interrogatório, caso o indígena não tenha completo
domínio da língua portuguesa.
Em relação aos delitos, a lei para os indígenas é a
mesma que a nossa. Índios podem ser e são presos quando roubam, quando praticam
atos de violência, cometem assassinatos e por todos os motivos que os
não-indígenas são presos. São presos também injustamente, para serem calados e
oprimidos, para não serem cumpridos seus direitos como no caso do Cacique
Babau, que luta pelo seu território e sofre continuamente perseguição das
autoridades (saiba
mais).
Em 1978, o Estatuto do Índio ordenou ao Estado
brasileiro a demarcação de todas as terras indígenas até dezembro de 1978.
Depois de dez anos, a Constituição Brasileira reconheceu aos índios os
“direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Art. 231), e
estabeleceu o prazo de cinco anos para a demarcação de todas as Terras
Indígenas.
Quando a Constituição traz o termo “direitos
originários”, ela revela que este direito vem desde sempre, antecedendo à
própria Constituição. As demarcações são apenas reconhecimento desse direito
pré-existente. A noção de território não constitui apenas uma relação de
ocupação ou exploração, mas o fundamento da existência do povo, pois somente em
seu território é possível a prática plena de sua cultura.
No entanto, até hoje o Estado se recusa a cumprir
sua obrigação e a cada dia crescem mais os interesses econômicos sobre estas
terras tradicionais. Não bastasse isso, muitas Terras Indígenas são cada vez
mais diretamente ou indiretamente afetadas por grandes empreendimentos,
monoculturas com uso abusivo de agrotóxicos, mineradoras etc.
Enquanto os agentes destes grandes poderes
econômicos tentam barrar todos os processos de demarcações, também dizem que é
preciso modificar o procedimento de demarcação. O Decreto 1.775/1996 detalha todo o procedimento,
havendo um grupo técnico especializado, coordenado por antropólogo, com a
finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica,
sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário
necessários à delimitação. Após passar por autorização da Funai, é aberto um
prazo para contestações e somente depois é feita a demarcação.
Os ocupantes não-indígenas são indenizados tanto pelas
benfeitorias quanto pelos títulos de propriedade de boa fé. Além disso, os
ocupantes não-índios que atendem ao perfil da reforma agrária são reassentados,
a cargo do Incra.
As Terras Indígenas são inalienáveis e
indisponíveis, ou seja, os indígenas não podem efetuar nenhum negócio jurídico
que acarrete a transferência da titularidade de direitos sobre estas terras, e
nem mesmo permitir o beneficiamento de não-indígenas com a exploração dos
recursos naturais, pois o usufruto é exclusivos dos indígenas.
O discurso anti-indígena tem como principal
argumento que as Terras Indígenas ocupam 13% do território nacional. Mas os
brasileiros não se dão conta da imensa área que os latifúndios ocupam. O Brasil
tem uma área de mais de 851 milhões de hectares. Destes, mais de 318 milhões
são ocupados por grandes propriedades, totalizando 37% do território nacional.
A tabela abaixo mostra a quantidade de
propriedades, a soma da área que estas propriedades ocupam e a porcentagem que
esta área representa sobre o território nacional. Para compreender melhor,
consideramos que “minifúndio” é o imóvel de área inferior a um módulo fiscal
(Decreto nº 84.685/1980), “pequena propriedade” é o imóvel rural com área entre
1 e 4 módulos fiscais (Lei nº 8.629/1993) e “média propriedade” é o imóvel
rural com área superior a 4 módulos fiscais e até 15 módulos fiscais (Lei nº
8.629/1993).
Não há definição legal para “grande propriedade”, a
qual, no entanto, passou a ser tida na prática das políticas agrárias como o
imóvel rural com área superior a 15 módulos fiscais.
Módulo fiscal é uma unidade de medida corresponde à
área mínima necessária a uma propriedade rural para que sua exploração seja
economicamente viável (Lei nº 6.746/1979). A depender do município, um módulo
fiscal varia de 5 a 110 hectares.
Classificação
|
Número de propriedades
|
Área (ha)
|
Peso sobre área total
|
Minifúndio e pequena propriedade
|
4.656.377
|
135.474.462
|
16%
|
Média propriedade
|
380.584
|
113.879.540
|
13%
|
Grande propriedade
|
130.515
|
318.904.739
|
37%
|
Terra Indígena
|
505
|
106.739.926
|
13%
|
Outros (cidades, Unidades de Conservação, etc.)
|
– – –
|
176.578.038
|
21%
|
Total – Brasil
|
– – –
|
851.576.705
|
100,00%
|
Fonte: Cadastro do Incra – Classificação segundo dados declarados pelo
proprietário – e de acordo com a Lei Agrária/93 e IBGE, Censo 2010
Proponho agora um exercício de imaginação.
Consideremos que estes 130 mil proprietários vivam em suas grandes terras com
suas famílias, e imaginemos que cada lar tenha em média 3,3 moradores, a mesma
média dos lares brasileiros de acordo com o Censo Demográfico 2010.
Vamos desconsiderar que, ainda segundo o Incra, 69
mil das grandes propriedades, que equivalem a mais de 228 milhões hectares (40%
da área das grandes propriedades) são improdutivas. A maior parte destas
pessoas possuem outras fontes de renda, não produzem seus alimentos e não
possuem laços ancestrais com a terra. Muitas vezes os proprietários não são
pessoas, e sim empresas. Mas, por hora, deixemos estas questões de lado e nos
voltemos aos números, tratando igualmente a área indígena e a de grandes
proprietários.
Os indígenas, por sua vez, ocupam uma área de 106
milhões de hectares, sendo mais de 567 mil pessoas, conforme a tabela abaixo:
Classificação
|
Área (ha)
|
População
|
Área disponível por pessoa (ha)
|
Grande Propriedade
|
318.904.739
|
430.699 (estimativa)
|
740
|
Terra Indígena
|
106.739.926
|
567.583
|
20
|
Fonte: Cadastro do Incra – Classificação segundo dados declarados pelo
proprietário – e de acordo com a Lei Agrária/93 e IBGE, Censo 2010
Ou seja, os indígenas estão em um território
quase 3 vezes menor que o território das grandes propriedades, apesar de ser
quase 4 vezes mais populoso. E repare que não estão sendo contados aqui os
indígenas que vivem nas cidades, somente os que vivem em Terras Indígenas.
Seria preciso multiplicar em 37 vezes o número de proprietários no latifúndio
para ele se equivaler à área por pessoa em Terra Indígena. Portanto, nota-se:
temos no Brasil muita terra para poucos proprietários.
A maior parte das terras
indígenas está na Amazônia Legal, onde vive cerca de 55% da população indígena
no Brasil. Nas demais regiões do país, principalmente nas regiões Nordeste,
Sudeste e Sul, além do estado do Mato Grosso do Sul, os povos indígenas
conseguiram manter a posse em áreas geralmente diminutas e esparsas, espremidos
entre cidades e fazendas, sem as condições mínimas necessárias para manter seu
modo de vida. É justamente nessas regiões que se verifica atualmente a maior
ocorrência de conflitos fundiários e disputas pela terra.
O que está em jogo não é aquele pé de fruta que o
avô plantou e onde ele amarra sua rede. Não importa que ali estejam enterrados
os seus antepassados, que ali seja a morada de seus espíritos e do mundo
sagrado. O “desenvolvimento” vem como um trator atropelando tudo com suas
hidrelétricas, mineradoras, gados, sojas e milhos transgênicos. Os índios amam
o seu território. E muitos morrem porque os não-índios amam o dinheiro.
Cá entre nós, poucas pessoas verdadeiramente gostam
muito de trabalhar. A maioria trabalha porque precisa do dinheiro para pagar as
contas, para comprar comida, para comprar o celular e para comprar sempre e
cada vez mais tudo que possa surgir. Essa é a lógica das sociedades
capitalistas: ter cada vez mais, acumular e nunca estar satisfeito com o que
tem.
A lógica indígena, tradicionalmente, não se
interessa em acumular, e sim em desfrutar. Portanto, se antes do sol chegar ao
alto do céu, o homem já pescou peixe para a família toda se alimentar naquele
dia, ele pode voltar para casa e descansar, pois sua obrigação já foi cumprida.
Mas espera aí… caçar, pescar, plantar, colher,
manejar, construir sua casa, fazer seu barco e fazer tudo mais que uma vida
auto-subsistente necessita não parece nada fácil. Imagine então que para
realizar cada uma destas tarefas é preciso muitas outras. Para fazer o barco,
por exemplo, é preciso entrar no mato, encontrar uma árvore de uma espécie
específica que esteja num bom tamanho e formato, derrubar a árvore, tirar da
floresta, cortar e moldar a madeira, queimar de um modo específico com uma
lenha específica, moldar novamente como o avô ensinou, queimar de novo, e
pronto, finalmente ele tem o barco para pescar, resumidamente. Quem se
habilita?
Durante séculos os indígenas estiveram domesticando
diversas espécies de plantas que hoje consumimos, como o milho, um dos grãos
mais produzidos no mundo, e a mandioca, que os brasileiros tanto gostam. Estas
plantas e tantas outras, como feijões, abóboras, carás e tomates, não eram
encontradas na natureza como hoje as conhecemos. São o resultado de muito
trabalho indígena.
Superando esse preconceito, vamos considerar que os
indígenas também têm o direito de querer comprar coisas que compramos, e,
portanto, precisam de dinheiro. Algumas etnias estão buscando meios de vida que
integrem sua cultura a essa nova necessidade.
É o caso do povo Paumari, que vive no sudoeste do
Amazonas e está sendo pioneiro no manejo de pirarucu. Há 5 anos eles fazem o
manejo de 23 lagos, e no final de setembro de 2014 realizaram a pesca de 3.523
kg de pirarucu legalizados pelo Ibama. A iniciativa é apoiada pelo projeto
Raízes do Purus, realizado pela OPAN – Operação Amazônia Nativa com o
patrocínio da Petrobras (saiba
mais).
Outro exemplo de geração de renda aliado à
sustentabilidade e à cultura vem da etnia Kisêdjê, que habita a Terra Indígena
Wawi, anexa ao Parque Indígena do Xingu. Desde 2011 a comunidade participa de
um projeto para produção e comercialização de óleo de pequi. Em 2013 foram
produzidos 170 litros do óleo na mini usina contruída na aldeia Ngohwêrê. O
projeto conta com o apoio técnico do ISA – Instituto Socioambiental e financeiro
e organizacional do Instituto Bacuri e do Grupo Rezek (saiba
mais).
Todo mundo sabe que a cultura brasileira tem
influência indígena. Com eles aprendemos diversas palavras, o respeito à
natureza e o hábito de tomar banho todos os dias, certo? No entanto, para cada
elogio existe um contraponto: “índio que fala português não é mais índio”,
“antes índio era inocente, agora índio só pensa em dinheiro” e a pior frase de
todas: “índio fede”.
Essa mentira é muito comum: “índio fede”. Não, o
que fede é o preconceito. Índio tem cheiro de óleo de tucum, de urucum e
jenipapo, tem cheiro de fogo feito em casa, de peixe assado, de suor de quem
trabalha, de banho de rio, de sabonete e de perfume comprado em shopping.
Enchemos o peito para dizer que o Brasil é um país
lindo, rico em minérios, com uma biodiversidade impressionante e com muita
fartura de água. Mas seguimos exaurindo os nossos recursos naturais perseguindo
um desejo de crescimento que parece nunca ter fim, como se os recursos naturais
fossem infinitos. Mas saibam, recursos naturais chegam ao fim.
Estamos sacrificando nossa diversidade biológica e cultural
para enriquecer ainda mais quem já é rico. E os índios, que são o símbolo maior
de uma vida sustentável, que são os grandes conhecedores da biodiversidade
brasileira, tão pouco conhecida pelos cientistas, estão sendo desprezados.
Enquanto se desmata incessantemente a Amazônia e o
Cerrado, desaparecem espécies de plantas que poderiam ser utilizadas para
tratar inúmeras doenças, conhecidas ou não. Enquanto se pratica o genocídio e
se mantém os indígenas como reféns do “progresso”, infinitas possibilidades de
conhecimento vão desaparecendo e os brasileiros não se dão conta.
Mas fora do Brasil, há quem esteja bem atento às
nossas riquezas. Em 2013, quatro coreanos foram presos em Canarana (MT) por
biopirataria no Parque Indígena do Xingu. Eles fizeram um acordo com os
Kamaiurá, do Alto Xingu, e pagaram para obter 10 quilos de raízes e plantas
usadas pelos índios para fins cosméticos. Os coreanos viviam nos Estados Unidos
e um deles trabalhava para uma empresa de cosméticos. O acesso aos recursos
genéticos e conhecimentos tradicionais, sua proteção e a repartição de
benefícios associados é regido pela Medida Provisória nº 2186/16, de 23 de
agosto 2001 (saiba
mais).
E não se trata apenas de conhecimentos da natureza,
mas até mesmo de uma nova estrutura econômica e social, de um novo jeito de
fazer política, de tomar decisões, de olhar para nós mesmos, para nossos
semelhantes e para aqueles que são diferentes. Ninguém quer ouvir as
contribuições que o pensamento indígena pode trazer.
O racismo é uma voz que sussurra ao ouvido dizendo
que os índios são mais “atrasados” que a gente. Como se o “desenvolvimento”
fosse uma linha única para toda a humanidade, como se nossa sociedade fosse um
exemplo a ser seguido. Já que nós gostamos tanto de olhar para nosso umbigo,
vejamos também o que o nosso “desenvolvimento” tem gerado: produção de lixo,
contaminação e esgotamento de água, desigualdade social, violência e por aí
vai…
Mesmo que no mundo todo cada vez mais aumente a
preocupação ambiental, o Brasil continua com a mesma ideologia que balança no
centro de nossa bandeira, nossa palavra de ordem é o progresso.
Um progresso desesperado, que não pode dar o tempo
para fazer o estudo de impacto ambiental, que não pode analisar as
possibilidades de redução de danos, um progresso que chega custe o que custar,
e que agora, mais do que nunca, quer explorar os recursos das Terras Indígenas.
O principal aspecto a ser considerado é que os
grandes donos do poder econômico (os setores bancário, armamentista, minerário,
farmacêutico, da construção civil, do agronegócio etc.) possuem interesse em
divulgar uma imagem negativa dos indígenas. As grandes corporações tomaram
conta da arena política e querem a qualquer custo convencer a nação de que “é
preciso crescer e os índios atrasam o desenvolvimento do País”. Na lógica deles
é mais importante plantar soja para a China do que preservar as nascentes
brasileiras.
O cenário que se apresenta hoje aos povos indígenas
é pior do que o do índio que avistou Cabral em 1500. A partir de 2015, teremos
o Congresso mais conservador desde 1964, e especialmente, mais anti-indígena.
Foram eleitos 273 deputados federais e senadores considerados ruralistas, o que
representa um aumento de 33% em relação à legislatura atual, que conta com 205
ruralistas. Várias investidas avarentas da bancada ruralista ganharão força,
como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, a PEC 237, o Projeto
de Lei (PL) 1.610, o PL 227/2012 e a Portaria 303, de iniciativa da Advocacia
Geral da União (AGU).
Estas iniciativas tratam de temas como demarcação
de Terras Indígenas, posse indireta de Terras Indígenas a produtores rurais na
forma de concessão e exploração e aproveitamento de recursos naturais em Terras
Indígenas (minérios, recursos hídricos, florestais, etc.), independe de
consulta às comunidades afetadas. Além de irem contra a legislação vigente e
preceitos universais, elas são cruelmente orquestradas para que se perpetue no
país o ódio aos indígenas .
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal . E seguem lutando diariamente.
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal . E seguem lutando diariamente.
Os indígenas têm o direito de viverem em seus
territórios. Já temos no país muitas terras para a criação de gado e o plantio
de monoculturas, concentrada nas mãos de poucas pessoas. Desenvolvimento é bom,
mas de qualquer jeito, não. Não podemos admitir um desenvolvimento que
desrespeite leis, culturas e provoque mais desigualdade social.
Os indígenas devem poder escolher se desejam se
beneficiar do desenvolvimento e de que forma, ou se preferem nem se envolver.
Mas eles não podem continuar sendo desrespeitados em nome do interesse econômico.
Não precisamos de um crescimento desrespeitoso,
realizado sem estudos de impacto ambiental, social e cultural. Tampouco
necessitamos da malícia de políticos e da mídia. Precisamos sim tirar a venda
dos olhos e enxergar o índio realmente, pois são mentiras e preconceitos que
atrasam a evolução humana.
O desenvolvimento deve ser bom para todos. A paz
entre os povos, já prevista em nossa Constituição Federal, deve ir além da
diplomacia e incluir os que vivem em solo pátrio.
Tenhamos amor!
*Lilian
Brandt é antropóloga e colaboradora da AXA.
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